Artigo publicado originalmente na página web do Espaço Clara Corbelhe em 30/09/2022
A poesia conta em todas as literaturas com um alto valor simbólico. As ideias românticas de genialidade e inspiração e o caráter fundacional do género para muitas literaturas contidas nos quadros nacionais incrementam este valor. Esta circunstância, porém, não costuma implicar uma maior difusão dos textos poéticos entre os grupos que reconhecem à poesia essa superioridade. Já em 1998, este intuito levava o escritor Fran Alonso, atual diretor da editora Xerais, a afirmar que a poesia, com um público «minoritário, mas fiel», tinha uma «produção desmedida», o qual supunha um «sintoma de anormalidade» próprio das literaturas subalternas. No mesmo ano, o poeta Carlos Lema, diretor da coleção ‘Dombate’ (Galaxia) entre 2002 e 2022, apontava para a dificultosa relação entre a poesia como género minoritário –mormente destinada ao consumo entre pares– e as editoras como entidades comerciais, de tal modo que o reconhecimento positivo duma obra de poesia nom passa necessariamente pelo seu sucesso de vendas, mas pela valorização positiva de poetas e crítica.
Os exemplos acima patenteiam valorizações comuns a largos sectores do próprio campo editorial galego –como mostram, por exemplo, pesquisas em curso da professora da USC Cristina Martínez Tejero–, bem como ao conjunto do espaço social galego, e podem servir de ponto de partida para nos aproximarmos do campo editorial galego no presente século. Porém, estas valorizações nascem da própria posição a partir da qual –ou contra a qual– nos formamos e conformam apenas um passo prévio à criação de conhecimento. Entre as umas e o outro medeia a análise de dados empíricos.
Com o intuito de facilitar análises deste tipo sobre o campo editorial galego autonómico, em 2020 nasce na Universidade da Coruña o Projeto Livro Galego. Deste projeto surge uma base de dados de livro galego no período 1978-2019 livre, aberta, relacional, que possibilita múltiplas abordagens. Como caso de estudo e a partir de trabalhos prévios, neste artigo analisaremos a poesia em galego publicada pelas editoras nascidas entre 2003 e 2019 em relação a diferentes parâmetros: a cronologia, os volumes de publicação, o género das pessoas envolvidas, as relações entre a tradição, a importação e a produção original –postas de relevo pelo professor belga José Lambert– e, por último, o papel das antologias e os prémios na população selecionada. Leve-se em conta, para a contemplação dos dados e das análises a seguir, que o critério de seleção exclui por enquanto as obras publicadas por editoras consolidadas e detentoras do centro do campo editorial galego, tais como Edicións Xerais ou Galaxia, colocando no escopo a atividade editorial das empresas do século atual.
Dentre as 100 editoras incorporadas ao campo desde 2003, 46 estão envolvidas na publicação de poesia. Nos seus catálogos encontramos 313 registos de textos poéticos, aproximadamente 13% das obras dadas a lume pelas 100 editoras mencionadas. O ritmo de publicação destas referências obedece à progressiva acumulação de editoras nos anos em foco e mostra uma relativa estabilidade a partir de 2010. Esta estabilidade contrasta com o ritmo de publicação no campo editorial galego no geral, que sofreu uma importante descida como efeito da recessão provocada pela crise financeira de 2008. Esta contraposição parece indicar, portanto, que as 46 editoras em foco mantêm uma relativa autonomia a respeito do campo económico.
Algumas das estratégias que podem ajudar a compreender esta autonomia são os programas de subscrição –caso do clube da Através–, a organização paralela de cursos de escrita –caso da Apiario– ou, embora só temporalmente, a abertura da livraria Chan da Pólvora em Santiago de Compostela por parte da editora homónima. Outra estratégia que pode explicar a continuidade de determinadas coleções, já mais dependente do campo do poder, é o mantimento de prémios literários dotados por concelhos galegos –Aira e Ourense, Caldeirón e Malpica de Bergantinhos, Medulia e Ponte Cesso–.Os volumes de publicação das editoras selecionadas oferecem mais alguns dados relevantes. Observamos, em primeiro lugar, que apenas doze das 46 editoras publicam no período 2003-2019 mais de dez títulos de poesia. Entre esses projetos editoriais, encontramos alguns de corte generalista, com volumes de publicação total relativamente elevados que permitem dedicar parte do catálogo da editora à lírica em combinação com géneros melhor sucedidos economicamente, como a narrativa e a literatura infanto-juvenil. Doutra parte, encontramos também editoras especializadas em poesia que destacam claramente: Apiario e Chan da Pólvora. Neste sentido, uns volumes absolutos baixos apontam para um entendimento da edição de poesia como uma atividade artesanal, uma delicatessen de alta qualidade quanto objeto físico. Deixaremos apenas rascunhada a relação desta tendência com o conceito de «fetichização textual» acunhado pelo professor Antón Figueroa, segundo o qual as sociedades diglóssicas tendem à bibliofilia e ao colecionismo.
Data início | Poesia | Total | Percentagem | |
Chan da Pólvora Editora | 2016 | 35 | 36 | 97,22% |
Apiario Editora | 2014 | 14 | 15 | 93,33% |
Caldeirón | 2007 | 25 | 27 | 92,59% |
Medulia Editorial | 2014 | 15 | 17 | 88,23% |
Edicións Barbantesa | 2010 | 20 | 33 | 60,60% |
Bubela | 2006 | 27 | 49 | 55,10% |
Meubook | 2010 | 13 | 65 | 20,00% |
Através Editora | 2009 | 20 | 107 | 18,69% |
Morgante | 2007 | 11 | 79 | 13,92% |
Biblos Clube de Lectores | 2003 | 14 | 127 | 11,02% |
Faktoría K de Libros | 2005 | 11 | 232 | 4,74% |
No relativo ao género das pessoas produtoras, se bem que os trabalhos com a base de dados não permitem ainda diferenciar as autorias primárias das secundárias –ilustradoras, prologuistas, tradutoras etc.– constatamos um importante desequilíbrio: de 410 pessoas envolvidas na edição dos títulos em foco apenas 34,88% som mulheres. Esta proporção não desmente apenas o mito do excessivo protagonismo das mulheres neste género, mas também mostra que as poetas ficam longe de alcançarem um protagonismo sequer similar ao dos homens que cultivam a lírica. Aliás, o facto de 410 pessoas estarem ligadas a 313 referências aponta para uma importante diversificação nas suas autorias, embora, como indicado acima, fica pendente duma exploração por funções –que poderá ser também clarificadora feita desde um prisma feminista–.
Quanto à tríade lambertiana importação-tradição-produção própria, podemos comprovar como apenas 26 de 313 registos correspondem a traduções. Dentre elas, resulta sintomática a presença de obras clássicas do cânone ocidental, como as de Dante e Petrarca, e o facto de a sua tradução ter sido subsidiada pelas ajudas autonómicas a esta atividade. Doutra parte, tomando como principal indicador do peso da tradição o Dia das Letras Galegas, observamos que a sua presença também não é quantitativamente relevante, com apenas 18 livros relacionados com sete autores e duas autoras homenageadas. Portanto, verificamos que a produção contemporânea é o polo predominante na população estudada.
Por último, ocupar-nos-emos dos prémios e as antologias, como possíveis dispositivos de consagração. Além do apontado acima sobre a colaboração entre editoras e instituições públicas para o mantimento de prémios, indicaremos que são 31 os livros premiados publicados pelas editoras em foco e que, desses 31, 16 correspondem ao prémio de poesia erótica Illas Sisargas, promovido pela Caldeirón; isto mostra a relevância da editora bergantinhã na hora de consolidar um espaço estável para este repertório. No relativo às 17 antologias presentes na nossa população, observamos algumas compilações de autores concretos, como Carvalho Calero –agente central no subsistema reintegracionista– ou toda a série ‘Sentimentalismo’ ligada à Editorial Bubela –um projeto fortemente centrado num agente individual, Xesús Manuel Valcárcel–. Além destas, chamam a atenção as publicadas por Apiario (No seu despregar, 2016) e Chan da Pólvora (13. Antoloxía da poesia galega próxima, 2017; Dentes para a mazá, 2018), pois mostram uma clara vontade destes projetos por se constituírem em referências na poesia galega, assumindo a tarefa de selecionar –ou, no caso de 13, acolher a proposta de antologia duma voz procedente da academia, María Xesús Nogueira– as novas vozes que se incorporam a este género.
Em síntese, os parâmetros examinados acima desenham um panorama habitado por projetos editoriais que evitam no possível as dependências unívocas do mercado ou do poder, com um volume de produção reduzido; observamos também um notável desequilíbrio de género nas pessoas envolvidas e um predomínio da produção contemporânea. Projetos como Apiario e Chan da Pólvora aparecem como referências no subcampo, tanto pela relevância quantitativa dos seus catálogos em relação com outras editoras quanto pela sua aspiração à qualidade, também mediante a publicação de antologias pensadas para destacarem e organizarem novas vozes no panorama poético galego. Por sua vez, Caldeirón consolida-se como espaço de referência para a poesia erótica através do prémio Illas Sisargas.
Esta aproximação empírica do campo editorial galego, enfim, permite traçar algumas linhas de generalização a partir dos dados observados. Neste sentido, constatamos como o género poético sobrevive nos catálogos de algumas das editoras generalistas mencionadas, mas sobretudo como vários projetos especializados (sobre)vivem da poesia, conseguindo aproveitar no seu favor o valor concedido ao género no subcampo da produção restrita –aquela dificultosa relação entre o minoritário e o comercial–, enquanto implementam outras atividades que garantem a sustentabilidade dos seus projetos. Estas linhas, ainda abertas, deverão ser continuadas na procura de novas hipóteses, no caminho de um diagnóstico do subcampo da edição poética galega que permita compreendê-la e construí-la.